reportagem especial

'No parto, senti tudo que outras mães sentem, mas meu bebê não tinha mais vida'

Pâmela Rubin Matge


Foto: Renan Mattos (Diário)
Andressa mora na Tancredo Neves, bairro que registra maior número de casos da doença

A perda de um filho, ainda que ele ainda esteja no ventre, não diminui o sofrimento de quem reorganiza a rotina e se enche de esperança na iminência de uma nova vida. Desde 29 de abril, quando chega em casa, logo na entrada da garagem, Andressa Rodrigues Messias, 35 anos, depara com o carrinho, o berço e o guarda-roupas do filho que ela não pôde ter. A doença, que assolou o Coração do Rio Grande, também fez parar o coração do bebê de Andressa e de outras três mães da cidade: a toxoplasmose.

Andressa é personagem de uma reportagem especial sobre o surto de toxoplasmose em Santa Maria. A reportagem traz também a história de Danielle Xaviergrávida com toxoplasmose que espera a confirmação sobre a situação do filho, e relata que Santa Maria pode se tornar referência nacional em protocolo de tratamento da toxoplasmose.

Por mero incidente ou negligência, a educadora física, que trabalha como copeira e se afastou do mestrado e do emprego, incomoda em ver noticiários em que ela própria se tornou estatística. Se revolta ainda mais, o comentário dos que dizem que "é uma doença sem gravidade" , ou que "é assim mesmo".

Moradora da Região Oeste, ela vive no bairro mais atingido pela surto. Só na Tancredo Neves são 108, dos 485 casos confirmados. A recente greve dos caminhoneiros também repercutiu na dificuldade de locomoção para o centro da cidade, bem como o acesso a mantimentos e a um simples botijão de gás. Na última semana, preços de muitos produtos subiram e prateleiras ficaram vazias. O cenário encareceu o cotidiano de muitas pessoas e agravou a situação de quem quer, mas mal consegue se prevenir, já que ferver água é imprescindível em meio ao surto.

Por cerca de três meses - da notícia da gravidez até a perda do bebê, Andressa peregrinou por unidades de saúde e hospitais.
Confira uma entrevista com ela:


Foto: Renan Mattos (Diário)
"Até então, eu achava que, passando o terceiro mês da gestação, teria menos risco. Me enganei"

Diário de Santa Maria- Você estava planejando a gravidez? Como foi a descoberta de que estava com toxoplasmose?  
Andressa Rodrigues Messias
- Eu não tinha programado. Mas, os familiares sempre torceram, e meu filho sempre quis um irmãozinho. Já havia passado 14 anos do primeiro filho, aí veio a notícia. Logo de início, nos preparamos. Tudo muda a partir da vinda de uma criança. Descobri que estava grávida lá na metade de janeiro, quando fiz um teste de farmácia. Em fevereiro, comecei os exames de pré-natal na Unidade de Saúde Rubem Noal. Demorou até eu saber que estava com a doença. No primeiro teste, no dia 21 de fevereiro, o exame para toxoplasmose foi não reagente.

Diário - Então, quanto você soube?  
Andressa
- Só no final de abril. Antes, andei por tudo. Foi difícil diagnosticarem os sintomas. Diziam que o que eu sentia era normal da gestação, que era coisa de grávida, e não me pediam novos de exames. 

Diário - Quando começaram os sintomas?  
Andressa
- Em março. Era algo muito diferente. A dor de cabeça era insuportável, não conseguia falar com a pessoas. Depois, começaram as dores no corpo e três ínguas no pescoço. Eu tentava pedir atestado e ,no posto de saúde, entendiam que era corpo-mole. 

Diário - Aí você seguiu insistindo em atendimento?
Andressa
- Faço mestrado e trabalho como copeira no Husm. Aí fui direto no Centro Obstétrico lá do hospital. Eu estava com 12 semanas e continuava com dor. Depois de um pequeno sangramento, me trataram com medicamentos para uma infecção urinária, que nunca senti nada e não sabia que tinha. Me pediram exames, mas não para toxo. Aí fui consultar em outra unidade. 

Diário - E, lá diagnosticaram?  
Andressa
- Procurei uma médica na Maringá (ESF Diácono João Luiz Pozzobon). Sei que o certo é consultar em postos da região onde moramos, mas como trabalhei lá, tinha cadastro. A médica me atendeu muito bem. Viu que o que eu sentia não era normal, recomendou repouso e pediu exame para toxo. Dias antes, eu tinha voltado ao Rubem Noal, só que estava sem obstetra, só tinha clínico-geral. Outra vez, o médico não tinha nem para ouvir batimentos. Na recepção, não tinha mais a carteirinha de gestante... Ali é complicado.


Foto: Renan Mattos (Diário)

Diário - Você se refere a estrutura ou aos profissionais?  
Andressa
- Sinceramente, não gostei do atendimento que recebi. Sei que é padronizado, mas depende de cada profissional. Nossa região (Oeste) tem muita gente. A unidade considera consultas agendadas por ordem de chegada. Mas tu tens que chegar na primeira hora. Começam atender às 14h, mas , eu, por exemplo, fui atendida às 18h. E, para gestante sem lugar para sentar, naquele calorão. E mais as confusões que tem ali na parte do PA, que é junto. É muito estressante. Se está tudo informatizado e tem uma agenda programada, para que fila e demora? Não tem cabimento.

Diário - Você fez algum exame particular?  
Andressa
- Sim. E foi lá no laboratório mesmo que descobri que tinha perdido. o bebê Eu estava junto com minha sogra. Antes de o médico falar, eu estava chorando, eu percebi tudo. No último ultrassom, eu via que o bebê já mexia, e naquele ali, não tinha sinal cardíaco, nada. O bebê estava morto dentro da barriga. O médico foi muito delicado, me deu a notícia e chorou junto comigo.

Diário - Você teve de voltar para o hospital?  
Andressa
- Voltei para casa para dar a notícia e decidir o que fazer. Estava todo mundo envolvido com a gravidez. Família e amigos. Por causa do surto de toxoplamose, sempre tinha gente preocupada. Cheguei a ganhar 60 garrafas de água em uma tarde. Temos uma casa pequena, mas estávamos reorganizando tudo. Quando voltei do laboratório, só olhei para meu marido. Ele entendeu e se isolou. Até então, eu achava que passando o terceiro mês da gestação, teria menos risco. Me enganei.

Diário - Você pretende ter mais filhos?  
Andressa
- Não pensei ainda. Foi um período cansativo e doído. Isso me causou medo e insegurança. E a pior parte: ter de ficar internada, com muita dor, para a indução. Senti todas as dores e tudo de um parto. Fui ao hospital no dia 28 de abril, às 23h, para acabar todo o processo só às 15h do dia 29. As profissionais foram muito atenciosas, e aconteceu tudo no quarto. Senti tudo que outras mães sentem, mas meu bebê não tinha mais vida. Eu preferi não ver, não saber o sexo, que na hora, a médica disse que já dava para saber. Foi o pior momento da minha vida. Pior pela perda e pela dor.

Diário - Você, neste momento, segue algum tratamento? 
Andressa
- Não. Pedi se eu precisaria de oftalmo, e me encaminharam. Mas agora estou aqui. Tenho de chegar em casa e ver as coisinhas do bebê ali na garagem. Umas eu já dei. Tenho de voltar para o trabalho lá dentro, no Husm, onde passei tudo. Já fiz todo o tratamento e, agora, pergunto: acabou? Não me perguntaram mais nada. O apoio psicológico seria importante não só para o meu caso, mas para todas as gestantes que estão passando por essa situação. Estamos falando de vidas. O único apoio que recebi no passado era um "o bebê está bem", "calma, vai ficar tudo bem", mas não ficou.

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